Há
democracia na fronteira?
Por Lúcio
Flávio Pinto | Cartas da Amazônia
Talvez
tenha sido uma cena inédita na história da justiça no Brasil a que
aconteceu na semana passada. Diante do oficial de justiça e de
agentes da Polícia Federal, que tentavam dar cumprimento à ordem
judicial, um índio munduruku recebeu e rasgou o papel que continha o
mandado de reintegração de posse concedido pelo juiz federal Sérgio
Wolney de Oliveira Guedes, da subseção judicial de Altamira, no
Pará.
O juiz
autorizou o consórcio responsável pela construção da hidrelétrica
de Belo Monte a retomar as obras, paralisadas pela ocupação do
canteiro principal por 170 índios os índios, que praticaram ato
semelhante um mês antes. Depois de destruírem o documento oficial,
os índios cantaram e dançaram para reafirmar sua decisão de se
manter no sítio Pimental, sob o cerco de tropa militar e da polícia.
Esse é o maior canteiro de obra em execução em todo Brasil. O
orçamento da usina, que será a terceira maior do mundo, quando
concluída, até o final da década, é de 30 bilhões de reais.
Muitas
ordens judiciais já deixaram de ser obedecidas ou foram apenas
parcialmente cumpridas no país. Mas provavelmente em nenhuma outra
ocasião a recusa foi tão frontal, feita escancaradamente diante dos
representantes do poder público encarregados de pôr em prática a
decisão de um magistrado. Qualquer outro cidadão que agisse dessa
forma seria preso na hora e enquadrado em vários dispositivos
penais, que o manteriam atrás das grades a partir daí.
Fortalecidos
por essa vitória, os índios conseguiram obrigar as autoridades da
república a providenciar que todos fossem levados de Altamira a
Brasília em avião especial do governo. Foram em seguida recebidos
em audiência pelo ministro Gilberto Carvalho, o palaciano mais
próximo da presidente Dilma Rousseff. Insatisfeitos, ocuparam a sede
da Funai, interrompendo por vários dias o expediente na Fundação
Nacional do Índio, que é autarquia especial da administração
federal e o tutor dos índios, menores para todos os efeitos legais
se não foram emancipados (e raros o foram até hoje).
Irritados
com o serviço de hospedagem, impuseram ao órgão melhoria no trato.
Mais irritados ficaram por não conseguirem novas audiências com
potestades brasilienses, dentre as quais o presidente do Supremo
Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, erigido à condição de
herói nacional. E, sem dar continuidade ao curto diálogo iniciado,
subiram hoje no avião oficial e voltaram ao local de origem sem
trazer na improvisada bagagem o troféu pretendido.
Os índios
mandaram seu recado de forma tão extremada quanto ao rasgar o papel
da justiça: não aceitam que Belo Monte continue a ser construída;
não aceitam, aliás, mais nenhuma hidrelétrica nas terras que
ocupam. Já o governo, entre vacilações e tibiezas, entre avanços
e recuos, não deixou também de fixar uma posição: vai continuar o
seu programa de obras, que deverá garantir a participação de mais
de 70% da energia de origem hídrica na matriz energética nacional.
No seu
entendimento, assim deve continuar porque essa é a fonte mais
abundante, mais barata e mais limpa de energia. Sem utilizar os rios
caudalosos da Amazônia, o Brasil, sem opções alternativas à
altura, teria que ficar sujeito ao risco de blecautes ou a ter que
reduzir ainda mais o incremento da atividade produtiva. Comprometeria
assim o seu crescimento futuro.
Apesar
dos esforços – sinceros ou demagógicos, eficientes ou
incompetentes – para uma solução negociada, com o prevalecimento
da razão, o impasse leva ao confronto e à vigência de uma lei não
escrita que é tão antiga quanto a civilização humana: a do mais
forte. Não há a menor dúvida sobre quem é o mais forte: aquele
que decidiu continuar Belo Monte e o vasto programa de
hidreletricidade na fronteira amazônica, ao final do qual a região
terá acrescentado 50% de energia nova à capacidade instalada atual
em todo país.
Que preço
o governo estará disposto a pagar na hipótese de dar prosseguimento
ao seu programa, mesmo enfrentando todas as forças de resistência
dos índios dos vales dos rios Xingu e Tapajós, no Pará, hoje o
quinto maior produtor de energia do Brasil e o terceiro maior
exportador de energia bruta (aquela que vai para fora das suas
divisas e se transforma em produtos acabados em outros Estados)?
Há
sempre os que apostam no recuo dos índios depois de atitudes
radicais, como as que tomaram nas últimas semanas. Esses setores
acreditam que os índios chegam a esse ponto manipulados por seus
aliados explícitos, como ONGs ou intelectuais de esquerda, ou atores
invisíveis, como países e empresas que boicotam os esforços dos
brasileiros pela ascensão ao topo da ordem econômica mundial.
Radicais
de ambos os lados à parte, uma solução adequada para o problema,
uma vez que ele alcançou a gravidade do estágio atual, não é
fácil. A gravidade resulta, em maior medida, da filosofia do fato
consumado que os executores desses empreendimentos de grande porte
adotam. Eles acham que todos os questionamentos e resistências serão
atropelados pela dimensão gigantesca que esses projetos assumem.
Como cogitar a sério a interrupção e cancelamento de uma obra de
R$ 30 bilhões, dos quais R$ 7 bilhões já foram aplicados?
Tem sido
assim quase sempre, sobretudo durante o regime militar. Os
tecnocratas contratados para dar embasamento aos movimentos do Brasil
Grande, o sonho geopolítico da ditadura, trabalhavam em seus
gabinetes e laboratórios para conceber intervenções drásticas e
profundas na Amazônia.
Assim, de
surpresa, prontas e acabadas, foram apresentadas à opinião pública
grandes estradas de integração, a colonização, a formação de
enclaves minerais, as hidrelétricas e tudo mais que permitiu
transformar a região na segunda maior usina de dólares do Brasil,
saindo quase do nada em menos de meio século. O impacto da surpresa
anestesiava possíveis reações. Prevenia até a compreensão do que
era anunciado.
Construir
os “grandes projetos” sob uma ditadura foi relativamente fácil,
desafios de engenharia à parte. O povo em geral e os intelectuais em
particular estavam sob controle, imobilizados, comprados ou se
alienaram dos atos decisórios. Na democracia é diferente. E a
grande diferença é como encarar minorias. Os índios, por exemplo,
das menos expressivas minorias, numericamente falando, mas das que
mais repercussão provocam com sua participação.
A
democracia, por enquanto, em relação a este aspecto, é mais uma
extensão dos 21 anos anteriores a 1985 do que uma ruptura com esse
padrão categórico, autoritário. Ao menos na Amazônia, ela
continua a ser uma planta frágil e indefesa, como a descreveu, com
uma retórica exata, o tribuno João Mangabeira.
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