Há dois
direitos garantidos pela legislação brasileira que se tornam
colidentes em algumas situações: o direito de propriedade sobre
fração de imóvel e o direito real de habitação. Isso porque, de
um lado, filhos querem ter garantido o direito à herança após a
morte do ascendente e, de outro, o cônjuge (ou companheiro)
sobrevivente, que residia na propriedade do casal, deseja preservar o
usufruto sobre o imóvel.
A
ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), entende que “é necessário ponderar sobre a
prevalência de um dos dois institutos, ou, ainda, buscar uma
interpretação sistemática que não acabe por esvaziar totalmente
um deles, em detrimento do outro”.
De acordo
com o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, também da Terceira Turma,
o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o
imóvel em que residia o casal, “desde que seja o único dessa
natureza e que integre o patrimônio comum ou o particular de cada
cônjuge no momento da abertura da sucessão”.
Ele
considera que a norma prevista no artigo 1.831 do Código Civil (CC)
de 2002 visa assegurar ao cônjuge sobrevivente (independentemente do
regime de bens adotado no casamento) o direito de moradia, ainda que
outros herdeiros passem a ter a propriedade sobre o imóvel de
residência do casal, em razão da transmissão hereditária (REsp
1.273.222).
Propriedade
e usufruto
Segundo o
ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do STJ, o proprietário
tem o poder de usar, gozar e dispor da coisa, “bem como de reavê-la
do poder de quem a detenha ou possua injustamente”. Já o
usufrutuário, segundo ele, tem o direito de usar e de receber os
frutos.
Ele
mencionou que, assim como o usufruto, o direito real de habitação
limita o direito de propriedade. É um “direito de fruição
reduzido que consiste no poder de ocupação gratuita de casa
alheia”.
Evolução
O CC/02
representou uma evolução quanto ao tema. O CC de 1916, com a
redação que lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei
4.121/62), garantia o direito real de habitação sobre o imóvel
destinado à residência da família apenas ao cônjuge sobrevivente
casado em regime de comunhão universal de bens (parágrafo 2º do
artigo 1.611).
Segundo o
ministro Sidnei Beneti, da Terceira Turma do STJ, a restrição
contida no código antigo era alvo de severas críticas, “por criar
situações de injustiça social”, principalmente a partir de 1977,
quando o regime legal de bens do casamento deixou de ser o da
comunhão universal para ser o da comunhão parcial.
“Possivelmente
em razão dessas críticas, o legislador de 2002 houve por bem
abandonar a posição mais restritiva, conferindo o direito real de
habitação ao cônjuge supérstite casado sob qualquer regime de
bens”, afirmou o ministro.
Direito
equivalente
Sidnei
Beneti lembrou que, antes do CC/02, a Lei 9.278/96 conferiu direito
equivalente às pessoas ligadas pela união estável. De acordo com o
parágrafo único do artigo 7º, “dissolvida a união estável por
morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de
habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou
casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da
família”.
A partir
daí, até o início da vigência do CC/02, a interpretação literal
das leis então vigentes poderia levar à conclusão de que o
companheiro sobrevivente estava em situação mais vantajosa que a do
cônjuge sobrevivente (casado em regime que não fosse o da comunhão
universal de bens). Contudo, para o ministro Beneti, “é de se
rechaçar a adoção dessa interpretação literal da norma”.
“O
casamento, a partir do que se extrai inclusive da Constituição
Federal, conserva posição juridicamente mais forte que a da união
estável. Não se pode, portanto, emprestar às normas destacadas uma
interpretação dissonante dessa orientação constitucional”,
declarou.
Equiparação
Em junho
de 2011, a Terceira Turma equiparou a situação do cônjuge
sobrevivente, casado sob o regime de separação obrigatória de bens
(cujo cônjuge faleceu durante a vigência do CC/16), à do
companheiro, quanto ao direito real de habitação.
O casal
era dono de um apartamento em área nobre de Brasília. Com o
falecimento da mulher, em 1981, transferiu-se às quatro filhas do
casal a meação que ela tinha sobre o imóvel. Em 1989, o homem
casou-se novamente, tendo sido adotado o regime de separação
obrigatória de bens. Ele faleceu dez anos depois, ocasião em que as
filhas do primeiro casamento herdaram a outra metade do imóvel.
As filhas
moveram ação de reintegração de posse contra a viúva para
tirá-la do imóvel. O juízo de primeiro grau indeferiu o pedido com
base no artigo 1.831 do CC/02. O Tribunal de Justiça do Distrito
Federal manteve a sentença.
Analogia
No STJ,
os principais argumentos utilizados pelas herdeiras foram a data de
abertura da sucessão (durante a vigência do CC/16) e o regime de
bens do casamento (separação obrigatória). Os ministros aplicaram,
por analogia, o artigo 7º da Lei 9.278, dando à viúva o direito de
continuar habitando o imóvel da família.
“Uma
interpretação que melhor ampara os valores espelhados na
Constituição Federal é aquela segundo a qual o artigo 7º da Lei
9.278 teria derrogado o parágrafo 2º do artigo 1.611 do CC/16, de
modo a neutralizar o posicionamento restritivo contido na expressão
‘casados sob o regime da comunhão universal de bens’”, disse o
ministro Sidnei Beneti, relator (REsp 821.660).
Quarta
parte
Caso
semelhante foi analisado pela Quarta Turma em abril de 2012.
Contrariando o entendimento adotado pela Terceira Turma, os ministros
consideraram que, nas sucessões abertas durante a vigência do
CC/16, a viúva que fora casada no regime de separação de bens tem
direito ao usufruto apenas da quarta parte dos bens deixados, se
houver filhos (artigo 1.611, parágrafo 1º, do CC/16).
A única
herdeira de um homem que faleceu na cidade de Goiânia, em 1999,
ajuizou ação contra a mulher com quem ele era casado pela segunda
vez, sob o regime de separação de bens. Reconhecendo que a viúva
tinha direito ao usufruto da quarta parte do imóvel onde residia com
o esposo, a filha do falecido pediu o pagamento de aluguéis
relativos aos outros três quartos do imóvel.
Aluguéis
O juízo
de primeiro grau condenou a viúva ao pagamento de aluguéis pela
ocupação de três quartos do imóvel, somente até 10 de janeiro de
2003, data da entrada em vigor do Código Civil atual, sob o
fundamento de que a nova lei conferiu a ela o direito real de
habitação, em vez do usufruto parcial. A sentença foi mantida pelo
tribunal de justiça.
A filha
recorreu ao STJ. Sustentou que não é possível aplicar duas regras
sucessórias distintas à mesma situação jurídica. O relator do
recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, não concordou com
as instâncias ordinárias quanto ao pagamento dos aluguéis somente
até o início da vigência do novo código.
Segundo
ele, o direito real de habitação conferido pelo CC de 2002 à
viúva, qualquer que seja o regime de bens do casamento, não alcança
as sucessões abertas na vigência da legislação revogada. “Com o
escopo de não atingir a propriedade e os demais direitos reais
eventualmente aperfeiçoados com a sucessão aberta ainda na vigência
do código de 16, previu o artigo 2.041 do código atual sua
aplicação ex nunc [não retroage]”, ensinou Salomão.
O
ministro explicou que, se não fosse assim, a retroatividade do CC/02
atingiria direito adquirido da herdeira, “mutilando parcela do
próprio direito de propriedade de quem o tinha em sua amplitude”.
Diante disso, a Turma deu provimento ao recurso especial (REsp
1.204.347).
União
estável
O direito
real de habitação assegurado ao companheiro sobrevivente pelo
artigo 7º da Lei 9.278 incide sobre o imóvel em que residia o casal
em união estável, ainda que haja mais de um imóvel a inventariar.
Esse entendimento foi adotado pela Terceira Turma em junho de 2012.
No caso
analisado pela Turma, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) deu
provimento ao recurso dos filhos de um homem que faleceu em 2005
contra sentença que reconheceu o direito real de habitação à
companheira dele.
Para o
TJPR, o direito real de habitação tem por finalidade impedir que os
demais herdeiros deixem o cônjuge sobrevivente sem moradia e
desamparado. Contudo, havia outros imóveis residenciais a serem
partilhados no inventário, inclusive um localizado em Colombo (PR),
adquirido em nome da companheira na vigência da união estável.
Última
residência
No STJ, a
companheira sustentou que mesmo havendo outros bens, o direito real
de habitação deveria recair necessariamente sobre o imóvel que foi
a última residência do casal. “Do fato de haver outros bens
residenciais ainda não partilhados, não resulta exclusão do
direito de habitação, quer relativamente ao cônjuge, quer ao
convivente em união estável”, afirmou Sidnei Beneti, relator do
recurso especial.
O
ministro citou doutrina do pesquisador José Luiz Gavião, para quem
“a limitação ao único imóvel a inventariar é resquício do
código anterior, em que o direito real de habitação era conferido
exclusivamente ao casado pela comunhão universal”.
Gavião
explica que, “casado por esse regime, o viúvo tem meação sobre
todos os bens. Havendo mais de um imóvel, é praticamente certo que
ficará com um deles, em pagamento de sua meação, o que lhe
assegura uma moradia. Nessa hipótese, não tem necessidade do
direito real de habitação” (Código Civil Comentado, 2003).
A Turma
deu provimento ao recurso especial da companheira para reconhecer o
direito real de habitação em relação ao imóvel em que residia o
casal quando do óbito.
Segunda
família
Em abril
de 2013, o STJ reconheceu o direito real de habitação sobre imóvel
à segunda família de um falecido que tinha filhas do primeiro
casamento. A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, adotou
entendimento diverso, mas ficou vencida. Em seu voto, ela deu
provimento ao recurso especial das filhas do primeiro casamento e
determinou a alienação judicial do bem.
A maioria
seguiu a posição do ministro Sidnei Beneti, que proferiu o voto
vencedor. Ele verificou no processo que todo o patrimônio do
falecido já havia sido transferido à primeira esposa e às filhas
após a separação do casal. Além disso, enfatizou que o imóvel
objeto do conflito era uma “modesta casa situada no interior”.
Para
Beneti, de acordo com a jurisprudência do STJ, o direito real de
habitação sobre o imóvel que servia de residência do casal deve
ser conferido ao cônjuge/companheiro sobrevivente, “não apenas
quando houver descendentes comuns, mas também quando concorrerem
filhos exclusivos do de cujos”.
Ele citou
vários precedentes da Corte, entre os quais, “a exigência de
alienação do bem para extinção do condomínio, feita pelas filhas
e também condôminas, fica paralisada diante do direito real de
habitação titulado ao pai”.
“A
distinção entre casos de direito de habitação relativos a
‘famílias com verticalidade homogênea’ não está na lei, que,
se o desejasse, teria distinguido, o que não fez, de modo que
realmente pretendeu o texto legal amparar o cônjuge supérstite que
reside no imóvel do casal”, destacou Beneti (REsp 1.134.387).
Fonte
site STJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário