À
primeira vista, quem comete crime, sabendo do risco de ser preso, só
pode ser louco. Mas há pessoas que não têm mesmo noção do que
fazem, nem das consequências que podem sofrer por suas ações. São
tratadas no Código Penal como inimputáveis, e o STJ soma ampla
jurisprudência sobre elas.
Inimputável
é aquele que não pode ser responsável pelo crime que praticou.
Embora tenha cometido o ilícito, é isento de pena. Segundo
Maximiliano Roberto Ernesto Füher, em trabalho denominado Tratado da
Inimputabilidade no Direito Penal, o conceito de loucura para a
medicina não corresponde ao conceito de loucura para o direito
penal.
Para a
medicina, o "louco" é portador de um sofrimento mental.
Para o direito, é o sujeito que não consegue delimitar as
fronteiras que a sociedade obriga. Os médicos teriam uma tendência
natural de supervalorizar a influência das causas psicopatológicas,
enquanto o juiz não aceita a irresponsabilidade penal em todos os
casos nos quais foi apontada enfermidade mental.
O artigo
149 do Código de Processo Penal (CPP) determina que, em caso de
dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz deve instaurar,
de ofício ou mediante requerimento de familiares ou do Ministério
Público, incidente de insanidade mental. O STJ entende que o
magistrado não precisa ficar preso ao laudo oferecido, mas, ao
renegá-lo, precisa fundamentar sua decisão (HC 52.577).
Dúvidas
de sanidade
Segundo a
psiquiatria forense, citada na obra Código Penal Comentado,
organizado por Celso Delmanto e outros, as pessoas que cometem crimes
podem ser divididas em cinco grupos: os criminosos impetuosos, os
criminosos ocasionais, os criminosos habituais, os fronteiriços
criminosos e os loucos criminosos. Nos dois últimos grupos é onde
se situariam os quadros de doença mental, capazes de justificar a
inimputabilidade ou a semi-imputabilidade.
O STJ
entende que não caracteriza cerceamento de defesa o indeferimento de
exame de sanidade mental se não há dúvida sobre a integridade da
saúde do paciente, não bastando simples requerimento da parte para
que o procedimento seja instaurado.
Em um
caso julgado, o juízo responsável pela aplicação da pena observou
que o réu vivia um quadro depressivo, considerado “natural em
pessoas submetidas ao cárcere”. A defesa ingressou com pedido no
STJ para que fosse realizado o exame de sanidade mental, mas o
Tribunal considerou que este não é obrigatório, especialmente
diante de tentativas protelatórias (HC 95.616).
A
jurisprudência aponta que são insuficientes para a instauração do
exame a mera alegação de distúrbios psíquicos, informes de
parentes sobre uma possível insanidade, internação anterior por
embriaguez e notícia de doença desacompanhada de provas, entre
outras circunstâncias (HC 107.102).
Critério
biopsicológico
O
psiquiatra forense Eduardo Souza de Sá Oliveira, médico do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), explica que, penalmente, para ser
enquadrada como inimputável, a pessoa dever ser incapaz de entender
o ilícito do fato e não conseguir, no momento, agir de outra forma,
senão no sentido do crime. É preciso os dois elementos para
justificar a inimputabilidade, o que, para a perícia, é um
quebra-cabeça a ser montado.
“O fato
de o indivíduo ter uma doença mental, como a esquizofrenia, por
exemplo, não garante a inimputabilidade”, explica o médico. “É
preciso correlacionar o ato criminoso à doença.” O desafio da
perícia, segundo ele, é primeiro fazer o diagnóstico, depois
estabelecer uma relação de causa e efeito. Na sua opinião, o laudo
médico é suporte essencial para o juiz proferir sua decisão.
A
doutrina penal aponta três critérios que fixam a responsabilidade
penal: o biológico, o psicológico e o biopsicológico. Na análise
de inimputabilidade por doença mental, segundo decisão do STJ,
prevalece o último.
Assim
como explicou Eduardo Oliveira, não basta que o réu padeça de
alguma enfermidade somente (critério biológico), é preciso ainda
que exista prova de que o transtorno realmente afetou a capacidade de
compreensão do caráter ilícito do fato (critério psicológico)
(HC 55.320 e HC 33.401).
Pelo
critério biológico, considera-se que a responsabilidade estará
sempre diminuída caso o indivíduo tenha prejuízo na saúde mental,
não importando o nexo causal. O psicológico, por sua vez, não
pergunta se o paciente tem uma doença, apenas quer saber se, no
momento do ilícito, o indivíduo se encontrava com a capacidade de
entendimento e autodeterminação reduzida. E o critério
biopsicológico é uma somatória dos dois critérios.
Laudos
divergentes
Eduardo
Oliveira acredita que a comunicação dos médicos com os magistrados
ainda não é adequada, o que compromete a qualidade da medida
adotada. Para ele, existem pessoas tendentes ao crime, que são
aqueles que não incutiram os valores morais, que não obedecem às
regras e aos limites impostos socialmente. Mas as doenças, de modo
geral, são tratáveis.
O STJ
considera que laudos juntados ao processo, relativos a outros
processos criminais, não servem para atestar a saúde mental do
acusado. E o simples fato de terem sido elaborados dois laudos
antagônicos relativos ao mesmo réu não conduz à necessidade de um
terceiro.
Em um
caso julgado, os exames psicológicos foram realizados no momento de
outros fatos delituosos e apresentaram conclusões conflitantes. O
STJ decidiu que seria dispensável novo exame de insanidade mental,
se o magistrado que teve contato pessoal com o acusado dispensou a
realização de incidente (HC 72.800).
Em outro
caso analisado, um primeiro laudo atestou a inimputabilidade do réu,
e um segundo explicitou a imputabilidade. A defesa ingressou no STJ
para que fosse feito terceiro exame, com o argumento de que havia
vício no que decretou a sanidade.
O
entendimento que prevaleceu foi o de que “a particularidade de o
réu ter sido, em momento anterior, absolvido em virtude de sua
inimputabilidade não conduz necessariamente ao afastamento da
condenação” (HC 88.645).
Fora de
controle
A
Classificação Internacional das Doenças (CID), da Organização
Mundial da Saúde (OMS), reúne quase uma centena de doenças e
transtornos mentais. O Código Penal, entretanto, divide os
distúrbios psíquicos em quatro categorias: a doença mental,
perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental retardado e
desenvolvimento mental incompleto.
A
psiquiatra forense Maria Regina Rocha Matos, em consideração sobre
o tema, adverte que, na prática, é quase impossível sintetizar as
doenças da mente numa lista nominal, e o próprio código não o
faz. A Justiça deve decidir caso a caso o destino de cada paciente.
A
inimputabilidade do doente mental está prevista no artigo 26 do
Código Penal, que determina a absolvição do condenado quando da
constatação da doença, o que, segundo o STJ, deve ser feito de
forma sumária, com aplicação da medida de segurança (HC 42.314).
Essa deve ser fixada por sentença por prazo indeterminado, devendo
perdurar até a constatação da cessação da periculosidade por
perícia.
Eduardo
Oliveira afirma que, às vezes, a medida de segurança determinada em
juízo pode ser pior que a pena. Se o réu é condenado
criminalmente, pode ser preso por, no máximo, 30 anos, além de
poder conseguir a progressão de regime e redução da pena. O doente
mental precisa de um laudo de cessação de periculosidade, que nem
sempre o estado está aparelhado para fornecer.
Nos
últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem promovendo
mutirões para avaliar o cumprimento de normas relativas à execução
de medidas de segurança, aplicadas a pessoas portadoras de doença
mental. Em 2012, em três estados brasileiros (Bahia, Rio de Janeiro
e Pará), foram encontrados 260 internos vivendo em hospitais de
custódia, sem amparo adequado e em segregação permanente, por
terem perdido o vínculo familiar ou por não haver uma rede de
assistência para acompanhá-los.
O doente
mental, em razão de delito, pode cumprir medida de segurança ou ser
submetido a tratamento ambulatorial. A medida de segurança prevista
no Código Penal é diferente da prevista na Lei de Execução Penal
(LEP). A primeira, de acordo com o ministro do STJ Gilson Dipp, é
aplicada ao inimputável no processo de conhecimento e tem prazo
indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada a cessação
da periculosidade. Não pode ser aplicada de forma simultânea à
pena privativa de liberdade.
A medida
de segurança prevista pela LEP, por sua vez, é aplicada quando, no
curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença
mental ou perturbação da saúde mental, oportunidade na qual a pena
é substituída pela medida de segurança, que deve persistir pelo
período de cumprimento da pena imposta na sentença penal
condenatória. Conforme o STJ, a medida de segurança substitutiva
pode ter no máximo a mesma duração da pena privativa de liberdade
determinada (HC 55.044). O tratamento ambulatorial é previsto para
aqueles que cometem delitos puníveis com detenção.
Perigo à
vista
Eduardo
Oliveira informa que nem todas as doenças mentais são
irreversíveis. E o paciente, quando tratado, pode não agir
necessariamente no sentido do crime. “O problema é que, para
tratar o indivíduo, é preciso ter remédio, médico, psicólogo,
estabelecimento adequado e, principalmente, suporte social e
familiar”, diz ele – o que nem sempre é possível. A sociedade e
a família, geralmente, se afastam do doente criminoso, dificultando
sua recuperação.
Para o
STJ, se a doença ocorrer durante a execução da pena privativa de
liberdade, a medida de segurança faz o papel de internação
provisória e se computa o tempo. O artigo 152 do Código de Processo
Penal (CPP) dispõe que o processo deve ser suspenso quando a doença
sobrevém à infração.
O
Tribunal suspendeu o júri de um portador de doença mental em razão
de doença superveniente ao crime, e de acordo com o relator,
ministro Nilson Naves, “de nada valerá uma pena ou medida que não
se adeque à realidade mental do paciente” (HC 41.808).
Segundo o
STJ, a medida de segurança não é castigo e é balizada por
critérios terapêuticos. Não se confunde com medida socioeducativa.
Em caso em que um menor foi internado na Febem de São Paulo, o STJ
considerou que a medida apropriada ao adolescente infrator e portador
de distúrbio mental não é socioeducativa, mas “protetiva” (HC
45.564).
O juiz de
execução penal Ademar Vasconcelos, em programa na TV Justiça
apresentado no dia 19 de janeiro deste ano, apontou que o caso do
menor infrator é grave porque a lei não exige o diagnóstico quando
do cumprimento do processo socioeducativo, o que compromete sua
recuperação e a dos que estão a sua volta. “Sem medo de errar,
30% dos infratores adolescentes têm transtornos não
diagnosticados”, disse ele.
A
jurisprudência é no sentido de que a manutenção de inimputável
em prisão comum é constrangimento ilegal, mesmo quando da falta de
vaga em hospital psiquiátrico. Em caso específico, no entanto, a
Sexta Turma permitiu que um acusado de cometer crime ficasse em
prisão comum, até que surgisse a vaga em estabelecimento
apropriado. O indivíduo era acusado de cometer atos libidinosos com
criança de cinco anos.
Para a
Sexta Turma, na ausência de vaga, o juízo da execução teria a
faculdade de substituir a internação por tratamento ambulatorial
(RHC 22.604), medida geralmente aplicada para quem comete infração
sujeita a reclusão.
Os
procedimentos relativos à execução de medidas de segurança, assim
como as diretrizes que devem ser adotadas em relação aos pacientes
judiciários, estão previstos na Resolução 113 e na Recomendação
35 do CNJ.
Predestinado
ao crime
O Código
Penal prevê situações de semi-imputabilidade para aquele que, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento
mental incompleto, não era inteiramente capaz de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
O parágrafo único do artigo 26 prevê redução da pena de um a
dois terços para os infratores.
O STJ
considera que a diminuição da pena prevista nesse parágrafo é
obrigatória (REsp 10.476). Um réu foi condenado a 19 anos e seis
meses de reclusão pelo crime de homicídio, e o Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul (TJRS) havia decidido que era faculdade do juiz
a diminuição da pena. O STJ fixou a tese de que a redução da pena
é obrigatória e não uma mera faculdade do juiz.
Ao
contrário do que acontece com o inimputável, que obrigatoriamente
deve ser absolvido, conforme a jurisprudência, o semi-imputável
pratica uma conduta típica e ilícita (HC 135.604). Eduardo Oliveira
criticou o fato de não haver no país integração entre o hospital
de custódia e o sistema público de saúde, que favoreça melhor
amparo para o paciente e suporte para o magistrado.
“O
paciente recebe alta médica no hospital de custódia e não se sabe
o que usou, como foi o tratamento, chegando ao sistema público no
zero novamente”, afirmou ele. E um bom diagnóstico, para os
doentes mentais, é essencial, sob o risco de se colocar um doente
mental em presídio comum ou um semi-imputável em manicômio
judiciário.
Fonte
site STJ
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