Em julgamento unânime, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) reformou decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que,
sob o argumento de ter havido consentimento da menor, absolveu um homem
processado por fazer sexo com sua enteada de 13 anos.
“Repudiáveis os fundamentos empregados pela magistrada de primeiro
grau e pelo relator do acórdão impugnado para absolver o recorrido,
reproduzindo um padrão de comportamento judicial tipicamente patriarcal,
amiúde observado em processos por crimes dessa natureza, nos quais o
julgamento recai inicialmente sobre a vítima para somente a partir daí
julgar-se o réu”, declarou o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do
recurso especial do Ministério Público de São Paulo.
Ao condenar o réu, a Turma seguiu entendimento recentemente
pacificado na Terceira Seção do STJ, segundo o qual a presunção de
violência nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor contra
menores de 14 anos (prevista na redação do Código Penal vigente até
2009) tem caráter absoluto.
Critério objetivo
De acordo com esse entendimento, o limite de idade “constitui
critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com
o ato sexual” (Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.152.864).
O Supremo Tribunal Federal também interpreta que a presunção de
violência é absoluta nos crimes cometidos antes da vigência da Lei
12.015/09, como no caso julgado pela Sexta Turma, em que as práticas
delitivas se deram entre 2004 e 2006.
A partir da Lei 12.015, que modificou o Código Penal em relação aos
crimes sexuais, o estupro (sexo vaginal mediante violência ou ameaça) e o
atentado violento ao pudor (outras práticas sexuais) foram fundidos em
um só tipo, o crime de estupro. Também desapareceu a figura da violência
presumida, e todo ato sexual com pessoas não maiores de 14 anos passou a
configurar estupro de vulnerável.
Livre vontade
Denunciado por sua companheira, o padrasto da menor foi absolvido em
2009 pelo juízo de primeiro grau. Para a magistrada, a menor não foi
vítima de violência presumida, pois “se mostrou determinada para
consumar o coito anal com o padrasto. O que fez foi de livre e
espontânea vontade, sem coação, ameaça, violência ou temor. Mais: a moça
quis repetir e assim o fez”.
O TJSP manteve a absolvição pelos mesmos fundamentos. Conforme o
acórdão, a vítima narrou que manteve relacionamento íntimo com o
padrasto por diversas vezes, sempre de forma consentida, pois gostava
dele.
A maioria dos desembargadores considerou que o consentimento da
menor, ainda que influenciado pelo desenvolvimento da sociedade e dos
costumes, justificava a manutenção da absolvição.
Nova ordem
Ao julgar o recurso do Ministério Público, o ministro Schietti
refutou a posição das instâncias ordinárias. Para ele, a sentença e o
acórdão do tribunal paulista violaram o artigo 224, alínea “a”, do
Código Penal – vigente à época dos fatos –, segundo o qual a violência é
presumida quando a vítima não tem mais de 14 anos.
“A interpretação que vem se firmando sobre tal dispositivo é no
sentido de que responde por estupro o agente que, mesmo sem violência
real, e ainda que mediante anuência da vítima, mantém relações sexuais
(ou qualquer ato libidinoso) com menor de 14 anos”, afirmou o relator.
Segundo Schietti, seja qual for o enfoque – jurídico, sociológico ou
humanístico –, os fundamentos utilizados pelas instâncias ordinárias
distanciam-se da nova ordem constitucional e dos novos contornos que a
política de proteção integral a crianças e adolescentes vem
crescentemente assumindo no Brasil e no mundo.
Discurso anacrônico
Para o ministro, é frágil a alusão ao “desenvolvimento da sociedade e
dos costumes” como razão para relativizar a presunção legal de
violência prevista na antiga redação do Código Penal. O “caminho da
modernidade”, disse Schietti, é o oposto do que foi decidido pela
Justiça paulista.
“De um estado ausente e de um direito penal indiferente à proteção da
dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos paulatinamente
para uma política social e criminal de redobrada preocupação com o
saudável crescimento físico, mental e afetivo do componente
infanto-juvenil de nossa população”, afirmou o ministro.
Ele também considerou “anacrônico” o discurso que tenta contrapor a
evolução dos costumes e a disseminação mais fácil de informações à
“natural tendência civilizatória” de proteger crianças e adolescentes, e
que acaba por “expor pessoas ainda imaturas, em menor ou maior grau, a
todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce”.
Culpa da vítima
“A vítima foi etiquetada como uma adolescente desvencilhada de
preconceitos, muito segura e informada sobre os assuntos da sexualidade,
pois ‘sabia o que fazia’. Julgou-se a vítima, pois, afinal, ‘não se
trata de pessoa ingênua’. Desse modo, tangenciou-se a tarefa precípua do
juiz de direito criminal, que é a de julgar o réu, ou, antes, o fato
delituoso a ele atribuído”, disse o relator, citando expressões da
sentença.
O ministro externou perplexidade com a afirmação do relator da
apelação de que o vínculo afetivo que a vítima nutria por seu padrasto
afastaria a incidência do direito penal: “Tal afeto deve imperar neste
afastamento por ser legítimo e até moral”, chegou a dizer o
desembargador do TJSP.
“A lógica é perversa”, acrescentou Schietti, “porque não apenas
legitima o sexo entre adultos e adolescentes/crianças, como é também
simplista, ao desconsiderar a gravidade e a dimensão da violência sexual
intrafamiliar, tão corrente na praxe judiciária, amiúde perpetrada sem o
emprego de outra força que não mera ascendência de quem se impõe pela
autoridade ou mesmo pelo disfarçado afeto à(o) filha(o), neta(o),
sobrinha(o) ou enteada(o).”
Papel de pai
“Nenhuma relevância se conferiu nas decisões [de primeira e segunda
instância] ao fato de que o réu se encontrava, como padrasto, na
condição de substituto da figura paterna da ofendida”, criticou o
ministro, ressaltando que esse aspecto só foi levantado pela
desembargadora do TJSP que proferiu o único voto divergente.
Para a desembargadora, “cabia a ele zelar pelo adequado
desenvolvimento físico e psicológico da vítima e não desvirtuá-la à
prática de atos que indiscutivelmente afastam a menina da ingenuidade
que seria adequada à sua idade. A menor encontrava-se em sua casa, local
inviolável que deveria lhe proporcionar proteção e amparo. Certamente
isso não lhe foi oferecido”.
A Sexta Turma deu provimento ao recurso para condenar o padrasto pela
prática do crime de atentado violento ao pudor (cometido antes da Lei
12.015). O processo foi remetido ao TJSP para a fixação da pena.
Fonte site STJ
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